Viagem ao Uruguai e à Argentina: um depoimento

Gostaria de começar este depoimento transcrevendo um pequeno conto retirado da obra O Livro dos Abraços do poeta uruguaio, Eduardo Galeano:

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!

Ao longo das centenas de quilômetros da costa do Uruguai, mais de uma vez este conto me veio à lembrança. As infindáveis e suaves colinas, as dunas mais além e, finalmente, o mar, compunham a paisagem que conseguia capturar pela janela do ônibus. Embora ampla e generosa, ainda assim, parecia contida neste minúsculo conto. Por isto posso falar que não é tão só um conto, mas também um poema.

Mas eu não sabia que poderia recorrer a ele de novo, na construção de uma reflexão do que foi esta viagem, para além das arquiteturas que vimos, das paisagens nas quais mergulhamos, nas risadas que rimos juntos, nas raivas que sentimos... queria me deter na maneira como nos entregamos a ela (a viagem), como nos construímos nela e, como vimos o outro neste mesmo processo.

Voltemos, então, aos escritos de Galeano:
O pequeno Diego, certamente, sabia alguma coisa sobre o mar, portanto, tinha uma idéia do mar. Senão não toparia uma jornada que se não era penosa, no mínimo, era trabalhosa. Estava, pois, mobilizado pela curiosidade.

Mas o mar real, imenso e fulgurante, não conferiu com o mar que habitava o seu imaginário. Daí a sua emoção e mudez. Daí o pedido de socorro ao pai, quem, possivelmente, havia proporcionado elementos para a construção da sua idéia inicial de mar.

Diego tem agora uma outra idéia de mar. Posso dizer que Diego efetivamente viajou.

Muito diferente desta viagem é a viagem do turista.

Ele não viaja para modificar o que já imaginava da obra, do lugar, das cidades ou do país que visita. Ele viaja para constatar o que já sabia. É por isto que as companhias de turismo sabiamente atuam sobre ele. Aliás, ele é totalmente previsível. Aquelas empresas mandam algumas imagens e descrições sucintas sobre uma determinada região, bairro ou obra, muitas vezes completamente fake, e lá vai a presa conferir. É o caso da Boca em Buenos Aires, que alguém nesta viagem teve a infeliz idéia de colocar no programa.

Ao contrário do pequeno Diego, o turista não vivencia, portanto, não se emociona. Ele apenas consome. É por isso que tem pressa, quer ver (se é que vê) o máximo num mínimo de tempo. Sua passagem é rápida, o suficiente apenas para o clicar da câmera.

Mas por que, diabos, viaja o turista?

Eis aí um outro mistério, mas facilmente explicável.

Ele viaja pelo mesmo motivo que quer ter um belo carro (eu não disse um bom carro), ele quer causar inveja. O seu prazer não está no usufruto da coisa em si, mas no que produz nos olhos do outro. Não por acaso, adora enviar postais, adora telefonar para sua aldeia, adora fotografar a si mesmo nos diferentes lugares. Num certo sentido não saiu de casa, ou melhor, continua carregando consigo toda sua aldeia.

A violência numa certa medida é também um produto deste mecanismo perverso da produção da inveja, como um fim último. Por isto, posso insistir um pouco mais neste ponto.

Numa propaganda de telefone celular (não sei porque os comerciais de celulares são sempre horríveis) um jovem é assediado no elevador pela modelo Gisele Bündchen, mas a sua única preocupação é quanto a seus amigos que não acreditariam num fato tão extraordinário. Daí o uso de um aparelho capaz de registrar as imagens. Neste exemplo, além daquele mecanismo já mencionado, isto é, que o seu gozo não vem da sua ação com uma mulher belíssima, mas da inveja e admiração dos amigos, então, associa-se a este triângulo, um outro aspecto que diz da sua miséria sexual: o seu desejo é apenas o desejo de ser desejado por uma mulher como esta modelo. Enfim, ele mesmo não a deseja. O que há é um narcisismo exacerbado, infantil, que o impede de tornar amante. Ao menos um amante maduro ou se jovem, um jovem capaz de desejos tão profundos e fortes como os de Werther, personagem de Goethe.

Um país, uma cidade, uma arquitetura ou uma obra de arte, antes de mais nada é um campo de experiência, de experiência estética sobretudo. Quem de nós poderá esquecer aquela tarde no monumento aos desaparecidos políticos do Uruguai? A singeleza e ao mesmo tempo a radicalidade da obra, o murmúrio do vento sobre as árvores misturado com os das vozes, as flores depositadas pela população, tudo isto num dia de finados, me fez sentir as perdas de todos nós. As pedras quebradas e talhadas da obra me remeteram outra vez Galeano, só que desta vez a uma outra obra: As Veias Abertas da América Latina... O Miguel contou, são 173 desaparecidos. Mortos que, enfim, ganharam uma sepultura, mas não o esquecimento.
O verdadeiro viajante também fica carregado de um monte de coisas, mas não são das bugigangas, lembrancinhas, mas sim daquelas experiências, de sensações vividas, de emoções e trocas. Enquanto o turista nunca se perde, mesmo porque sempre vai aos lugares certos com fins pré-determinados, o viajante se perde, aliás, sabe se perder. Ao ritmo dado pelo guia, o turista vai sempre em frente com um horário contabilizado e olhar dirigido. Tudo muito rápido, preciso e... superficial.

Escrevi tudo isto para formular uma simples questão:
E a viagem de estudos, como deveria ser?

Não tendo uma resposta clara, poderia dizer que no mínimo seria uma viagem para aprender a viajar!

Américo
29/11/2004

Post scriptum:
Queria agradecer aos que nesta viagem me ensinaram a viajar e aos que não sendo ainda viajantes, mesmo assim me deram elementos para estas pequenas reflexões.

Fonte:ishida@arq.ufsc.br Publicado em:30-09-2011 12:22:09